Por João Pedro Pádua
Este é um texto que escrevi, em nome da Psicotropicus, para um blog colaborativo, baseado no livro “Cristal na Veia”, escrito por um adito e policonsumista de drogas americano chamado Nic Sheff. O livro é autobiográfico, muito interessante.
Drogas e Prevenção (ou para que(m) importa o que botamos na veia?)
Uma verdade interessante, mas dificilmente aceita, é essa: nós, como indivíduos e como sociedade, somos os nossos preconceitos. Várias áreas do conhecimento, da filosofia hermenêutica à psicolingüística, passando pela sociologia interacional, pela antropologia cultural e pela psicanálise, todos chegaram à mesma conclusão: a forma como percebemos, compreendemos, interpretamos e atuamos no e sobre o mundo envolvem, sempre, os nossos preconceitos, seja na forma de conteúdos culturais predeterminados, de normas sociais ou mesmo de padrões e preferências pessoais, por vezes incoscientes.
Isso pode parecer esquisito, já que aprendemos desde o colégio que é mal e feio ser preconceituoso. No entanto, por mais que nós nos esforcemos, vamos sempre ser preconceituosos: sempre veremos e sentiremos o mundo a partir de uma lente toda própria, que envolve a maneira como fomos criados, as nossas tendências e vivências psíquicas e as normas sociais a que somos, a todo momento, expostos, pelo simples motivo de viver interagindo em sociedade. O problema então, não é ser ou não ser preconceituoso, mas poder refletir e escolher quais preconceitos são bons e quais não são bons: quais nós podemos e devemos manter, e quais nos trazem problemas e concepções inaceitáveis sobre o mundo e sobre os outros.
O.k.: você deve estar se perguntando: “isso não é um post sobre drogas? O que diabos isso tem que ver com drogas?” Se você está se fazendo essa pergunta, ótimo: é exatamente isso o que vai garantir que você está prestes a entender o espírito da coisa – tal como eu e os meus preconceitos a vemos, claro. Pois bem: o espírito da coisa é esse: quando o assunto é drogas e tudo o que se relaciona com ela, estamos cobertos de preconceitos sobre os quais não costumamos refletir. Parece que nos impõem uma determinada visão sobre o tema e ninguém pode discutir sobre esses preconceitos sem ser taxado de maluco ou de “drogado”. Os preconceitos que temos de discutir começam no significado mesmo da palavra drogas.
Num sentido bem amplo droga significa qualquer substância química que provoca alguma modificação no organismo – desde um calmante até um antiácido. Não por outro motivo, o equivalente norte-americano à nossa Vigilância Sanitária, que autoriza a comercialização de remédios, é a Food and Drug Administration (FDA); numa tradução livre: “administração de DROGAS e alimentos”. O.k., mas esse significado é, realmente, um pouco amplo demais para o nosso debate. Então, podemos reduzir um pouco este significado e dizer que droga é qualquer substância PSICOATIVA, isto é, qualquer substância capaz de atuar e modificar o funcionamento do nosso sistema nervoso central, especialmente do cérebro. Assim, manteríamos dentro da definição o calmante, mas retiraríamos o antiácido. Essa parece uma definição bastante satisfatória e é, de fato, amplamente utilizada na literatura médica, psicológica e farmacológica. Curiosamente, não é a mais popular no debate público sobre drogas – e sobre os nossos preconceitos sobre drogas.
Curiosamente, o significado mais utilizado para a palavra drogas, na sociedade, é o que se refere a tudo aquilo que a lei penal qualifica como substância cuja comercialização e o consumo são ilícitos (crimes). Isso fica claro, por exemplo, quando nós voltamos a atenção para o fato de que o Ministério da Saúde tem um programa nacional para o “álcool e outras drogas”. Note que embora o álcool seja claramente uma substância psicoativa – altamente “viciante”, por sinal –, o fato de que ele não é previsto na lei penal como proibido faz com que ele não seja mais percebido dentro da categoria das drogas. Falamos do álcool, mas isso vale também para os ansiolíticos/calmantes (como clonazepam (“Rivotril”) ou alprazolam (“Frontal”)), algumas anfetaminas de uso médico (como metilfenidato (“Ritalina”) ou fenoproporex (“Lipomax AP”, “Inobesin”)) ou mesmo alguns anestésicos à base de barbitúricos e opiáceos; em todos esses casos, a compreensão geral (preconceito) parece não ver, nessas substâncias, drogas, mas, talvez, remédios ou, simplesmente, bebidas (no caso do álcool).
Por isso, a primeira coisa que se tem de fazer, quando vamos discutir nossos preconceitos sobre drogas é deixar claro o significado dessa palavra, desse conceito social. A definição de droga apenas como substância ilícita (prevista na lei penal) é arbitrária e insustentável: o álcool, por exemplo, tem efeitos primários e colaterais muito mais fortes do que o THC (princípio ativo da maconha), causa mais dependência do que a maconha e do que qualquer droga sintética e tem uma síndrome de abstinência (conjunto de sintomas físicos derivados da interrupção abrupta do uso em usuários “viciados”) tão grave quanto a da heroína. No entanto, bebidas à base de álcool são anunciadas em horário nobre, promovidas por belas mulheres, em situação de total felicidade e descontração. Talvez por isso, o nosso preconceito sobre drogas diga que quem usa álcool é ser social, “pessoa de bem”, e quem usa maconha, LSD ou heroína é “drogado”.
Temos, então, se quisermos ser coerentes, de considerar droga como qualquer substância que atua sobre o sistema nervoso central (psicoativa, como dissemos). Todas elas, sem exceção, têm efeitos colaterais, muitos deles indesejados. Muitas delas causam dependência, outras tantas causam também adição (“vício”), e isso independe se são lícitas ou ilícitas. No livro “Cristal na veia” isso está muito bem demonstrado: o personagem principal, Nic, tem a sua segunda recaída quando sua então namorada, Zelda, lhe dá um opiáceo (buprenorfina) de uso prescrito por um médico, chamado comercialmente “Subutex”, que é usado para tratamento de adição em outros opiáceos, mas que tem efeitos primários muito parecidos com eles – anestesiamento, redução da freqüência cardíaca e respiratória, torpor, etc. No livro, esse simples ato de tomar uma medicação psicoativa prescrita fez com que Nic voltasse a sentir o “barato” das drogas, sem precisar comprar nada de um traficante, nem ingerir qualquer substância ilícita.
Drogas são drogas e isso independe, como vimos, da previsão de seu comércio ou uso como crime pela lei penal. Ao entender, portanto, esse princípio fundamental sobre as drogas, podemos ajustar os nossos preconceitos sobre o que são e como entender as drogas. E esse é primeiro ato de um programa preventivo social que se queira coerente e bem orientado.
O que dizer, então, da prevenção às drogas, com base nesse novo (e mais correto) preconceito que temos de adotar? Em primeiro lugar, como o próprio Ministério da Saúde reconhece, prevenção ao abuso de drogas não significa abstinência. Criar um programa de prevenção às drogas que se baseasse na abstinência seria inútil: na nossa definição de drogas, isso teria de incluir uma meta de que ninguém mais bebesse uma única cerveja ou fumasse um único cigarro – lembrem-se de que na clínica de tratamento que Nic freqüentou no Arizona não só era permitido fumar, como havia horário especialmente para isso; e era uma clínica de tratamento! Da mesma maneira, é artificial e inútil tentar impor a um usuário de maconha, como meta, que nunca mais fume um único cigarro dessa substância. Isso, obviamente, não vale para casos extremos com o de Nic. Porém, esses casos extremos são relativamente raros e não devem nortear um programa em geral, apenas casos especiais. dentro do programa.
Em segundo lugar, se não é útil ou crível impor a abstinência como meta de um programa preventivo, também não se deve confundir o uso de drogas com o ABuso de drogas. O uso de drogas não é uma doença ou uma síndrome em nenhum protocolo ou manual médico ou psicológico sério. E isso é verdade não importa qual a droga em questão. O abuso, por outro lado, pode ser diagnosticado como doença ou transtorno psíquico e se caracteriza por um uso recorrente de alguma substância (droga) durante um período de tempo relativamente longo, no qual esse uso recorrente traga prejuízos para o sujeito no campo profissional (falhas no trabalho, por exemplo), pessoal (dificuldades no casamento, por exemplo), e/ou social (dificuldades em manter amizades ou participar de eventos, por exemplo).
Se não houver, portanto, essa recorrência no uso E esse desajuste na vida do sujeito, o uso de qualquer droga pode ser tão inofensivo para o sujeito como o ato de beber uma cerveja toda sexta depois do trabalho – o que, por sinal, não deixa de ser um padrão de uso de droga, nesse caso, o álcool. Obviamente, para alguns tipos de drogas (como a heroína ou crack), esse uso normal, não abusivo, é menos freqüente, em parte por causa das características de atuação da substância no sistema nervoso central, mas em parte, também, por causa da subcultura marginal que se criou em torno desse uso, derivada da sua proibição e criminalização (arbitrária, como vimos). Mesmo assim, em casos que não se caracterizam como abuso ou dependência ou adição, não faz sentido falar em prevenção, a não ser que seja para educar a população a, se quiser, manter um padrão de uso que não descambe para o abuso ou a dependência. Mas, aí, teremos prevenção ao ABUSO, não ao USO de drogas.
Por fim, e para concluir este já alongado post¸ parece hoje mais claro que todas as medidas preventivas, que visem a evitar o abuso, evitar a dependência ou, ao menos, diminuir os males que eles acarretam para o sujeito e para a sociedade, passam pela valorização do sujeito, da sua autonomia e da construção, por si próprio, de uma narrativa significativa da sua existência. Neste sentido, o apoio da família, a educação na escola e em casa, o diálogo aberto sobre a questão e sobre os preconceitos que todos carregamos sobre ela, e, principalmente, o respeito à autonomia consciente de cada sujeito, são medidas simples, não-institucionais, e muito eficazes de prevenção ao abuso, à dependência e à adição em drogas.
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