Psicotropicus - Centro Brasileiro de Política de Drogas

Minha foto
Rio de Janeiro, RJ, Brazil

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Escola de Redução de Danos na Fronteira do Brasil com o Paraguai

"A Escola de RD de Ponta Porã, fronteira seca entre o Brasil e a cidade de Pedro Juan Caballero, no Paraguai, é fruto de mais de dez anos de trabalho de um grupo de profissionais de saúde e de outras áreas, que desenvolveu uma metodologia de trabalho com usuários de pasta base e crack. Grupos profissionais interdisciplinares de redutores de danos abordam semanalmente usuários de crack e pasta base nos locais de convivência. Criam com eles um vínculo de confiança, possibilitando o posterior encaminhamento dos usuários não apenas para tratamento no CAPSad, mas para suas famílias, para antigas e novas relações de sociabilidade, para programas de saúde, educação, trabalho, esporte, cultura e muitos outros", explicam os autores na primeira orelha.


Os resultados não podem ser mensurados, mas em Ponta Porã são reconhecidos milhares de usuários que passaram pelo atendimento e que conseguiram superar esse difícil momento de suas vidas. Outros voltaram ou iniciaram o uso do crack e da pasta, vivenciando um grande isolamento e sofrimento. Esses cidadãos são o principal motivo da Escola de RD. 


Escrito pelo Professor Paulo C. Duarte Paes, PhD, e Tathyane Sanches Orlando, terapeuta ocupacional, o livro recebeu ajuda da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul para sua publicação pela Editora Psicotropicus. Leia abaixo a Apresentação do livro escrita por Luiz Paulo Guanabara.

























Apresentação

A Redução de Danos frequentemente se torna objeto de controvérsia desnecessária, como se houvesse uma contradição entre prevenção e tratamento de um lado, e a redução das consequências sociais e à saúde, de outro. Essa é uma falsa dicotomia: são lados complementares.

Em: UNODC (2008). Reducing the adverse health and social effects of drug use: A comprehensive approach.

A questão das drogas é um assunto delicado e espinhoso. O que se pode perceber ao longo da história é que o ser humano sempre fez uso de substâncias que lhe alterassem o humor, a percepção e as ideias, seja para alívio da dor emocional, busca de insight, fins cerimoniais ou simplesmente para fins recreativos. Nesse último caso, o consumo de substâncias psicoativas não tem fins medicinais - embora seus efeitos, quando não especificamente deletérios, possam trazer os benefícios que o lazer proporciona. 

O ser humano sempre usou drogas e provavelmente sempre as usará. No entanto, nunca antes na história o uso desses produtos esteve tão em evidência e causou tantos problemas como hoje em dia. Toda semana, a mídia despeja matérias e mais matérias sobre drogas, traficantes e “viciados, maconheiros, vagabundos” - como pejorativamente costuma se referir aos usuários de drogas ilícitas, quer sejam dependentes delas quer não. Também nunca antes o uso de substâncias psicoativas teve tanto impacto na saúde pública como agora.

A Redução de Danos (RD) atua exatamente onde o uso de drogas extrapola o lazer ou sua finalidade medicinal e se torna nocivo. Visa a reduzir ou eliminar essa nocividade, sem que o consumidor tenha de necessariamente deixar de consumir a droga, seja lícita, ilícita ou controlada. Cada caso é um caso, não existe uma “dependência química” cujo remédio é a abstinência - o que não significa que a abstinência não seja uma meta legítima e necessária da estratégia de redução de danos. Somente uma análise das condições em que se encontra a pessoas que usa drogas, feita dentro dos parâmetros da RD, pode determinar se esse uso é indevido, autodestrutivo, problemático ou seja lá como você chama um consumo de drogas que acarreta males físicos, mentais, emocionais, materiais, sociais, educacionais, familiares, profissionais, etc. Para certas condições, a abstinência se impõe. Para outras, não.

Na década de 1990, uma estratégia de RD deslanchou por todo Brasil: os programas de troca de seringa. Isso ocorreu por conta da epidemia de HIV que crescia entre usuários de drogas injetáveis. Por muito tempo, quando se falava de RD, eram a esses programas que as pessoas estavam se referindo. Nesse período, os redutores de danos evitavam tomar posições frente à política de drogas nacional, como medo de perder as verbas que recebiam do governo por intermédio do Departamento de DST/AIDS do Ministério da Saúde. Na década seguinte, quando organizações como o Centro Brasileiro de Política de Drogas – Psicotropicus surgiram no cenário, os redutores tiveram de se posicionar – e a grande maioria se associou ao chamado movimento antiproibicionista. Descobriram então que no ministério os funcionários também eram em grande parte favoráveis à reforma que essas organizações defendiam, que seu medo era infundado.

Na década seguinte, ao mesmo tempo em que a RD entrava em declínio, com a crescente diminuição dos programas de troca de seringa em todo o país, seu escopo foi grandemente ampliado para abarcar a redução das consequências prejudiciais do uso de qualquer droga. Um projeto que teve destaque no emprego das estratégias de RD em relação ao uso de outras drogas foi o do “Kit Sniff”, para usuários de cocaína aspirada, visando a conter a transmissão de hepatite C. Também em relação ao álcool, a RD começou a ser aplicada. 

Hoje em dia, a RD luta para sobreviver, mas são poucas as ações efetivas em todo o país e grande a dificuldade de conseguir recursos, especialmente depois que o governo federal descentralizou o financiamento dos projetos, deixando essa função a cargo dos estados e das prefeituras – cujos funcionários em geral se mostram contrários à implantação de estratégias que não estejam voltadas para a doutrina de “abstinência ou morte”. 

Em vista disso, é muito bem vindo este livro que relata a experiência de uma organização de RD que atua numa das regiões mais difíceis para implantação de programas de assistência a pessoas que usam drogas: a fronteira do Brasil com os países vizinhos, local por onde passa e se consome muitas drogas ilícitas. O fenômeno do crack nas cidades do sudeste do país - que tem deixado as autoridades de saúde como cegos em tiroteio - assume proporções drásticas pela facilidade com que a pasta base de cocaína chega e é consumida nas regiões de fronteira com os países produtores: Bolívia, Peru e Colômbia. 

Enfrentando o preconceito que a RD desperta nos profissionais de saúde que trabalham com usuários de drogas, é louvável que esse grupo esteja agora inaugurando uma escola de RD em Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, em parceria com o Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPSad), fruto do trabalho de profissionais de saúde que desenvolviam atividades de RD em campo, antes realizadas por ONGs. Também é louvável o apoio que a organização recebeu tanto da Secretaria de Saúde e da Prefeitura Municipal de Ponta Porã para as atividades de redução de danos, quanto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul na publicação deste livro.

Além de toda experiência relatada na realização das ações de campo, este livro também apresenta os textos teóricos que fundamentaram essas atividades e resultaram nesse trabalho pioneiro da Escola de Redução de Danos de Ponta Porã. Sendo as fronteiras a região onde o trabalho de campo para reduzir os danos decorrentes do uso de drogas encontra os maiores desafios e dificuldades para sua implantação, é leitura fundamental para profissionais de saúde, de assistência social e demais interessados que querem saber mais sobre a teoria e a prática dessa política de governo chamada Redução de Danos.

Rio de Janeiro, 19 de abril de 2013
Luiz Paulo Guanabara
Fundador e diretor do Centro Brasileiro de Política de Drogas – Psicotropicus


Nenhum comentário: