Psicotropicus - Centro Brasileiro de Política de Drogas

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sábado, 28 de setembro de 2013

Lei Seca por Fernando Pessoa

Seguindo pelo caminho de mostrar o trabalho realizado pela Psicotropicus - Centro Brasileiro de Política de Drogas, publicamos hoje a análise da Lei Seca feita por um contemporâneo daqueles anos 1920, nada mais nada menos que o maior poeta português, Fernando Pessoa. Essa análise foi publicada no website da organização no final de 2005, como primeira de uma série de matérias de poetas e escritores antiproibicionistas, como Artaud, Baudelaire, Kerouac e, porque não, Freud, e outros.

Procurando na internet encontrei o texto no blog “Estamos na Merda”. O autor reconhece que não tem mídia, mas sabe que vindo do pensamento do maior poeta de Portugal e, ainda, escrito durante aquele tempo de exceção nos EUA, da proibição de bebidas alcoólicas, essa análise crítica da Lei Seca tem um peso enorme.

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Para mim, é definitivo. Pessoa acaba com a chamada Prohibition (Proibição), desnuda o rei, mostra a total falta de bom senso da primeira emenda à constituição estadunidense, que ostenta talvez entre seus maiores legados o novo e intenso nível de violência social inaugurado pela imposição de uma lei forjada na hipocrisia de um puritanismo ideológico–patológico. O nome de Al Capone tem sido usado para definir as consequencias da inconsequencia, que prevalecem até os dias de hoje.

A Lei Seca acabou cerca de 12 anos depois, mas e essa nova proibição curtida no interior da velha, que elevou o tom às alturas e declarou guerra ao inimigo número um, guerra às drogas? Como assim? Quer dizer que se sou policial e vejo um pé de maconha eu metralho o vegetal?

A guerra às drogas é mais ou menos isso, onde presidentes de países soberanos como Colômbia e Peru permitem que aviões fumiguem o solo pátrio com veneno. Veneno da multinacional Monsanto que, além dos plantios de coca, mata as outras culturas e deixa desnutrido e imprestável o solo. E então numa migração indesejada forçada os camponeses têm de abandonar suas terras e tentar a vida em outra região. (Quando cheirar sua fileirinha, ou melhor, no dia seguinte, depois de acordar e comer algo, e beber muito líquido, reflita sobre o custo social e a violência e sofrimento gerados para o pó ir parar no seu espelho e dali às suas narinas adentro.)

Desde que lançamos nosso website em 2004 insistimos na ênfase à concepção de “guerra contra as drogas” com intuito de fazer enxergar que era essa a política de segurança vigente no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro. As pessoas estavam tão acostumadas à violência da política de combate ao varejo nas favelas, que não percebiam o quadro maior, a estupidez de tratar com justiça criminal e polícia um problema de saúde pública.

Na segunda conferência da Harm Reduction Coalition (Coalizão de Redução de Danos) em Cleveland, EUA, em 1998, já tínhamos apresentado um trabalho chamado “The War on Drugs in Rio de Janeiro” (A Guerra às Drogas no Rio de Janeiro). Em outra oportunidade falaremos desse texto, talvez a primeira denúncia pública da política de segurança fluminense, de confronto bélico pelo controle do tráfico de drogas, feita num importante evento no exterior.

Vamos ler o que diz abaixo nosso amigo do “Estamos na Merda” e em seguida passar para a análise visceral da Lei Seca, em que Pessoa esculhamba e ridiculariza a mentalidade que deu origem a essa insanidade jurídico-policial.

Lei Seca por Fernando Pessoa

Como sou um Zé-Ninguém sem respaldo, sem moral e sem voz, vai aqui um texto de Fernando Pessoa falando sobre a Lei Seca americana e sua absurdidade. O artigo escrito para uma revista se encaixa muito bem sobre o que eu acho da superficialidade de pensamentos e argumentos a respeito da violência nas favelas, dos traficantes, da polícia, e da imbecilidade na restrição do uso de drogas não pesadas (sim, maconha):

“Chegamos ao ponto cômico desta travessia legislativa. Chegamos ao exame daquela legislação restritiva que visa a beneficiar o indivíduo, impedindo que ele faça mal à sua preciosa saúde moral e física. É este o caso de legislação restritiva que se acha tipicamente exemplificado no diploma que é o exemplo máximo de toda a legislação restritiva, quer quanto à sua natureza quer quanto aos seus efeitos – a famosa Lei Seca dos Estados Unidos da América. Vejamos em que deu a operação dessa lei.

Não colhemos ao caso social; tratá-lo não está na índole desta Revista, nem, portanto, na deste artigo. Não consideremos o que há de deprimente e de ignóbil na circunstância de se prescrever a um adulto, a um homem, o que há de beber e o que não há de beber; de lhe pôr açaimo, como a um cão, ou colete-de-força, como a um doido. Nem consideremos que, indo por esse caminho, não há lugar certo onde logicamente se deva parar: se o Estado nos indica o que havemos de beber, porque não decretar o que havemos de comer, de vestir, de fazer? porque não prescrever onde havemos de morar, com quem havemos de casar ou não casar, com quem havemos de dar-nos ou não dar-nos? Todas essas coisas têm importância para a nossa saúde física e moral; e se o Estado se dispõe a ser médico, tutor e ama para uma delas, porque razão se não disporá a sê-lo para todas?
Não olhemos, também, a que este interesse paternal é exercido pelo Estado, e que o Estado não é uma entidade abstrata, mas se manifesta através de ministros, burocratas e fiscais-homens, ao que parece, e nossos semelhantes, e incompetentes portanto do ponto de vista moral, senão de todos os pontos de vista, para exercer sobre nós qualquer vigilância ou tutela em que sintamos uma autoridade plausível. Não olhemos a isto tudo, que indigna e repugna; olhemos somente às consequências rigorosamente materiais da Lei Seca. Quais foram elas? Foram três:

1- Dada a criação necessária, para o “cumprimento” da Lei, de vastas legiões de fiscais – mal pagos, como quase sempre são os funcionários do Estado, relativamente ao meio em que vivem -, a fácil corruptibilidade desses elementos, tão solicitados neste caso, tornou a Lei nula e inexistente para as pessoas de dinheiro, ou para as dispostas a gastá-lo. Assim esta lei dum país democrático é, na verdade, restritiva apenas para as classes menos abastadas e, particularmente, para os mais poupados e mais sóbrios dentro delas. Não há lei socialmente mais imoral que uma que produz estes resultados. Temos, pois, como primeira consequência da lei seca, o acréscimo de corruptibilidade dos funcionários do Estado, e, ao mesmo tempo, o dos privilégios dos ricos sobre os pobres, e dos que gastam facilmente sobre os que poupam.

2- Paralelamente a esta larga corrupção dos fiscais do Estado, pagos, quando não para diretamente fornecer bebidas alcoólicas pelo menos para as não ver fornecer, estabeleceu-se, adentro do Estado propriamente dito, um segundo Estado, de contrabandistas, uma organização extensíssima, coordenada e disciplinada, com serviços complexos perfeitamente distribuídos, destinada à técnica variada da violação da Lei. Ficou definitivamente criado e organizado o comércio ilegal de bebidas alcoólicas. E dá-se o caso, maravilhoso de ironia, de serem estes elementos contrabandistas que energicamente se opõem à revogação da Lei Seca, pois que é dela que vivem. Afirma-se, mesmo, que, dada a poderosa influência, eleitoral e social, do Estado dos Contrabandistas, não poderá ser revogada com facilidade essa lei. Temos, pois, como segunda consequência da Lei Seca, a substituição do comércio normal e honesto por um comércio anormal e desonesto, com a agravante de este, por ter que assumir uma organização poderosa para poder exercer-se, se tornar um segundo Estado, antissocial, dentro do próprio Estado. E, como derivante desta segunda consequência, temos, é claro, o prejuízo do Estado, pois não é de supor que ele cobre impostos aos contrabandistas.


3- Quais foram, porém, as conseqüências da Lei Seca quanto aos fins que diretamente visava? Já vimos que quem tem dinheiro, seja ou não alcoólico, continua a beber o que quiser. É igualmente evidente que quem tem pouco dinheiro, e é alcoólico, bebe da mesma maneira e gasta mais – Isto é, prejudica-se fisicamente do mesmo modo, e financeiramente mais. Há ainda os casos, tragicamente numerosos, dos alcoólicos que, não podendo por qualquer razão obter bebidas alcoólicas normais, passaram a ingerir espantosos sucedâneos – loções de cabelo, por exemplo, com resultados pouco moralizadores para a própria saúde. Surgiram também no mercado americano várias drogas não-alcoólicas, mas ainda mais prejudiciais que o álcool; essas livremente vendidas, pois, se é certo que arruínam a saúde, arruínam-na contudo adentro da lei, e sem álcool. E o fato é que, segundo informação recente de fonte boa e autorizada, se bebe mais nos Estados Unidos depois da Lei Seca do que anteriormente se bebia.

Conceda-se, porém, aos que votaram e defendem este magno diploma que numa seção do público ele produziu resultados benéficos – aqueles resultados que eles apontam no acréscimo de depósitos nos bancos populares e caixas econômicas. Essa seção do público, composta de indivíduos trabalhadores, poupados e pouco alcoólicos, não podendo, com efeito, beber qualquer coisa alcoólica sem correr vários riscos e pagar muito dinheiro, passou, visto não ser dada freneticamente ao álcool, a abster-se dele, poupando assim dinheiro. Isto, sim, conseguiram os legisladores americanos – “moralizar” quem não precisava ser moralizado. Temos, pois, como última consequência da Lei Seca, um efeito escusado e inútil sobre uma parte da população, um efeito nulo sobre outra, e um efeito daninho e prejudicial sobre uma terceira.


A Lei Seca, é certo, é um caso extremo. Mas um caso extremo é como que um caso típico visto ao microscópio: revela flagrantemente as falhas e as irregularidades dele. O caso da Lei Seca é extremo por duas razões – porque a Lei Seca é uma lei absolutamente radical, e porque, principalmente em virtude disso, o Estado se viu obrigado a esforçar-se para que ela efetivamente se cumprisse. As leis menos radicais desta ordem – como, entre nós, a que pretendeu restringir as horas de consumo das bebidas alcoólicas – naufragam na reação surda e insistente do público, que as desdenha e despreza, e no desleixo de fiscalização do próprio Estado. Nascem mortas; e, como no caso dos monstros, o melhor é que assim aconteça, pois, se vivem, vivem a vida inútil e daninha da Lei Seca dos Estados Unidos.