Maria Lucia Karam
Integrantes de órgãos das Nações Unidas e delegações dos Estados Membros, reunidos em Viena, de 12 a 16 de março de 2012, na 55ª Sessão da Comissão de Drogas Narcóticas (CND), em nenhum momento enfrentaram o ponto nevrálgico, provocador de crises, danos, enganos, sofrimentos, violência, violação de direitos fundamentais – a proibição, a política antidrogas, a “guerra às drogas”. Todos reivindicaram a continuação do atual padrão proibicionista, monotonamente seguindo o que parecia ser um script previamente aprovado.
Logo no início, proposta de resolução introduzida pelos EUA, para reafirmar as três proibicionistas convenções da ONU sobre drogas e comemorar o centenário da Convenção sobre o Ópio de Haia, dava o tom das discussões: sugestões de emendas e respectivas discussões lidavam basicamente com a forma, com vírgulas, sinônimos, nada dizendo a respeito da substância. Ao invés de ideias e criatividade, os integrantes das mais diversas delegações exibiam uma mentalidade estreita. Uma “voz única e unificada” surgia como algo mais importante do que discernir, questionar, debater e construir uma nova e saudável política de drogas.
Com efeito, os relatórios do Secretariado do CND e do Diretor Executivo do UNODC (Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes) pregavam a importância da “voz unificada”, ensinando a linguagem aceitável, tal como “responsabilidade comum e compartilhada”, “cooperação internacional em direção a uma estratégia integrada e equilibrada”, etc. Os integrantes das delegações repetiam essas e outras expressões como se fossem mantras proibicionistas.
A contínua pregação sobre a importância de uma “voz única e unificada”, embotando ideias, questionamentos e debates, dava à sessão do CND uma incômoda semelhança com reuniões características de organismos totalitários, em que confeccionadas e cegamente seguidas “linhas partidárias”. Um processo democrático convida à expressão de opiniões divergentes, de diferentes ideias, de estratégias diversificadas; processos democráticos não ditam “linhas partidárias”.
O ponto nuclear colocado diante das delegações dos Estados Membros da ONU e diante de todas as demais pessoas é se o mundo deve ou não prosseguir com as falidas políticas, convenções internacionais e leis nacionais que consagram a nociva proibição e a sanguinária “guerra às drogas”. Mas, essa discussão foi surpreendemente evitada, como se houvesse um elefante na sala e ninguém se referisse a ele, todos procurando apenas contornar sua presença.
Nenhum Estado Membro reivindicou a necessária legalização, controle e regulação das drogas tornadas ilícitas.
Algumas delegações, aparentemente mais progressistas, tentaram introduzir referências a direitos humanos nas resoluções afirmadoras da proibição e da “guerra às drogas”. Houve resistências. Mas, o que as delegações aparentemente mais progressistas não perceberam e não percebem é que direitos humanos e “guerra às drogas” são incompatíveis. O que as delegações aparentemente mais progressistas não enfrentaram e não enfrentam é a manifesta incompatibilidade entre a proibição ditada pelas convenções da ONU sobre drogas e as normas garantidoras de direitos fundamentais inscritas nas declarações internacionais de direitos. É preciso optar: direitos humanos ou aplicação das convenções proibicionistas. A proibição violadora do princípio da isonomia, da exigência de ofensividade da conduta proibida; do postulado da proporcionalidade; do princípio das liberdades iguais e assim do próprio princípio da legalidade; a proibição causadora de violência, de mortes, de prisões, de doenças – a proibição não se harmoniza com a ideia de direitos humanos. Trata-se de conceitos incompatíveis e incongruentes. Aliás, guerras (como a “guerra às drogas”) e direitos humanos não são mesmo compatíveis em nenhuma circunstância.
As delegações do México e dos EUA, reconhecendo o tremendo impacto dos custos do encarceramento diretamente resultante da “guerra às drogas”, propuseram resolução visando a implementação de um meio mais barato de manter intocada a política proibicionista: monitoramento, aplicação consistente de penas de curta duração, drug treatment courts. A insistência nas drug courts para impor tratamento médico é puro non-sense. Um conceito de justiça a ordenar tratamento médico é algo tão sem sentido quanto seria o conceito de uma justiça medicamente ordenada.
Nem mesmo o Presidente da Bolívia, Evo Morales, intervindo na plenária de abertura, ou os demais representantes bolivianos, em painel dentro dos eventos paralelos, se desviaram da “voz única e unificada”. Em 75% de seu tempo reiteraram e apoiaram as regras proibicionistas, procurando se apresentar como aplicados “combatentes” da “guerra às drogas”, aparentemente em um esforço para serem aceitos pela ONU. Os restantes 25% do tempo foram gastos no que apontaram como uma necessária correção de um erro histórico, qual seja a ratificação da Convenção Única de 1961 que bane a folha de coca, pela ditadura então no poder na Bolívia. O Governo boliviano deixou claro seu apoio à “guerra às drogas”, procurando apenas excepcionar o direito cultural, histórico e “sagrado” do povo boliviano a mascar a folha de coca e/ou consumi-la de outros modos. Insistindo em que a folha de coca, em sua forma natural, não é venenosa, nem danosa, fazia questão de diferenciá-la da cocaína. O posicionamento da Bolívia reafirma a artificial e arbitrária distinção entre drogas lícitas e ilícitas, entre drogas “boas” e “más” – a folha de coca é “boa”; a cocaína é “má”.
De todo modo, a posição da Bolívia merece destaque e tem sua importância, na medida em que é a primeira vez que uma nação se desvia unilateralmente de parte do padrão ditado pela ONU. Denunciando convenção proibicionista da ONU e requerendo nova adesão condicionada a uma reserva quanto à folha de coca, a ação da Bolívia representa um singular exercício de soberania nacional e pensamento independente, diante de forte pressão contrária internacional. Poderia servir de exemplo para outros países.
As anêmicas discussões naturalmente conduziram à conclusão reafirmadora do status quo, apesar dos relatórios do Secretariado do CND, narrando a deplorável situação mundial em relação ao abuso de drogas e à sua comercialização, e apesar do relatório do Diretor-Executivo do UNODC, detalhando uma miríade de caríssimos programas e ações antidrogas por todo o mundo. Programas e ações custando 1,036 bilhões de dólares no biênio 2012-2013, conforme previsão orçamentária para tal período, isto é, aproximadamente 500 milhões de dólares anuais. A proibição às drogas também é um grande negócio.
Na cega reafirmação do status quo, outro dos mantras repetido à exaustão, não só por funcionários do CND e do UNODC, ou delegações dos Estados Membros, mas até mesmo por algumas ONGs, era a expressão “com base em evidências” – “tratamento com base em evidências”; “alternativas à prisão com base em evidências”; “soluções com base em evidências”. A evidência maior do fracasso e dos danos provocados pela atual política proibicionista, no entanto, permaneceu ignorada.
A maioria das ONGs não assume seu papel próprio de antagonistas à manifestamente falida e danosa política de drogas, normatizada nas convenções da ONU. Ao contrário, em Viena, assumiram um papel de diplomatas, marginalizando a contribuição que poderiam dar à reforma da política de drogas. Em reunião de ONGs acreditadas junto ao ECOSOC com a presidente do CND, as perguntas apresentadas foram anêmicas e submissas, sugerindo um desejo de maior participação, ao preço de renunciar à assertividade, ao questionamento, ao desafio, às propostas construtivas. ONGs devem manter distanciamento dos centros de poder e ser “radicais”, ou seja, reivindicar em alto e bom som necessárias mudanças profundas, que atinjam a raiz dos problemas, pensando e agindo com independência e fora dos padrões dominantes.
As delegações dos mais diversos países reunidas no Edifício M da sede da ONU em Viena, repetindo seus mantras proibicionistas, certamente não farão história. Ninguém lembrará por muito tempo o que foi dito em Viena. Foram palavras vazias, discussões que evitaram tocar no maior dos danos relacionados às drogas tornadas ilícitas – a proibição, a política antidrogas, a “guerra às drogas”. Foram ideias predeterminadas que reafirmaram e cimentaram uma falida e danosa política que, além de não funcionar em sua inviável pretensão de salvar as pessoas de si mesmas e construir um mundo sem drogas, produz demasiada violência, demasiadas mortes, demasiadas prisões, demasiadas doenças, demasiada corrupção.
Repetindo seus mantras proibicionistas, as delegações reunidas em Viena, ao reafirmarem a nociva e sanguinária “guerra às drogas”, consciente ou inconscientemente, reafirmavam uma política destinada a deixar um mundo com drogas mais descontroladas e desreguladas; com mais crimes, punições, prisões, perda da liberdade; com mais violência, mais mortes; com mais doenças, dependência, overdoses. A “guerra às drogas” já demonstrou ser uma calamitosa produtora de crises, violações a direitos fundamentais e sofrimentos, mas, durante a reunião do CND, lamentavelmente, ela ainda entrava e saía no Edifício M do Centro Internacional de Viena, sem precisar de crachá, sem passar pelos procedimentos de segurança, sem questionamentos e sem escrutínio.
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(*) Maria Lucia Karam é juíza aposentada no Rio de Janeiro. Membro da diretoria da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP) [www.leap.cc e www.leapbrasil.com.br], esteve em Viena, com três outros integrantes da mesma organização, assistindo à Sessão do CND.
2 comentários:
Eu comecei a ler normalmente, depois comecei a ler em voz alta já no segundo parágrafo. Maria Lucia Karam é um ode a lógica e textos lindamente construídos. Se puder um dia daria um abraço nela.
Me chamou atenção a morte das ONGs. Inexpressivas, aqui existe um número enorme de ONGs de fachada que somente lavam dinheiro. O negócio hoje são os Coletivos. A diferença é justamente a horizontalidade.
Não que não existam ONGs boas, como as descritas pela Karam. Elas existem mas são muito raras hoje em dia.
Acho que as ONGs foram, ideologicamente, fagocitadas pelo status quo. Em termos evolutivos, tiveram seu tempo e estão em extinção. Elas se moldaram ao jogo político antigo, anterior a era da comunicação.
Bruno, permita-me discordar de vc: ser coletivo é facil, a responsabilidade é mínima. Nao tem CNPJ, nao tem conta em banco, nao tem de declarar IR, nao tem funcionario ameaçando te levar pra justiça - alias, nem tem funcionario -, nao tem de prestar contas de nada, nao tem contador, é a maior moleza. Aliás já passou da hora de muitos desses coletivos crescerem e virarem ONGs, entrarem pra vida adulta. ONGs de verdade, claro, nao ONGs de governo, que é uma contradição em si mesmo, mas é o que mais existe por aí, como vc bem assinalou. Abço
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