Psicotropicus - Centro Brasileiro de Política de Drogas

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segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Política de Drogas e Direitos Humanos – 5º capítulo

Budapeste, 22 de julho de 2011

por Luiz Paulo Guanabara

Os participantes do curso de verão, representando todos os continentes Hoje é o último dia do seminário, e a palestra do colombiano Daniel Mejía, economista e professor da Universidad de los Andes, terminou há pouco. Na segunda sessão da manhã, haverá apresentações dos alunos sobre os trabalhos que desenvolvem em seus países . Estamos no coffee break e o coordenador do curso, Desmond Cohen, economista que trabalhou muitos anos como consultor da UNDP, passa com seu pesado acento britânico instruções sobre a logística do restante do dia, que terminará com um jantar de confraternização em um restaurante nas proximidades. Neste exato momento está sendo exibido um vídeo sobre a vigília à luz de velas que ocorreu ontem em frente à embaixada russa, em memória aos usuários falecidos por falta de tratamento adequado ou pela violência da guerra às drogas. O local escolhido remete à política de drogas russa, que não permite programas de redução de danos, como, por exemplo, substituição por metadona para dependentes de heroína. Na Rússia, a taxa de contaminação por HIV entre pessoas que injetam drogas é da ordem de 80%. É de pasmar então que, apesar desse número expressivo, programas de troca de seringas também sejam proibidos. Repressão pura e simples e violência bruta, com encarceramento de usuários e traficantes e penas pesadas, têm sido a única resposta do governo russo ao uso de drogas ilícitas.

A novaiorquina Heather, minha melhor amiga nessa temporada em Budapeste, amiga do Allan Clear e de outr@s colegas que trabalham na Harm Reduction Coalition, apresenta o primeiro trabalho: “Mudanças na Política de Drogas Estadunidense no Contexto Internacional”. Uma das mudanças mais expressivas é sem dúvida a permissão do uso medicinal de cannabis em cerca de dezesseis estados americanos - um assunto que a maioria dos que estão lendo este texto conhece. A inglesa Jane, que trabalha na Transform, um think tank antiproibicionista, apresenta em seguida uma das campanhas da organização sediada em Londres: “A Guerra às Drogas: Hora de Calcular os Custos”. De fato, os custos são enormes, a miséria e corrupção geradas por essa atitude psicótica no lidar com as drogas são cada vez maiores, assim como a violência e violação de direitos humanos.

Daniel Mejia

Enquanto o romeno Valentim apresenta o trabalho de sua organização de redução de danos de Bucareste, sigo dividindo minha atenção entre as apresentações e a produção deste texto. O tempo mudou em Budapeste, a temperatura caiu cerca de vinte graus, o céu antes sem nuvens está agora completamente nublado. Ontem, andando debaixo de uma chuva fina com alguns colegas e o professor Daniel Mejía até o restaurante onde almoçamos, tive a sensação de que tinha finalmente chegado na Europa! As palestras do Daniel sobre produção e tráfico de cocaína na Colômbia, abordadas sobre uma perspectiva econômica, foram muito estimulantes. Não tinha idéia de que a instalação de um laboratório na selva colombiana para refino de cocaína custava entre meio e um milhão de dólares, e que o preço de uma grama saía por menos de dois dólares ali na origem.

A romena Gina, que trabalha para a UNICEF, está apresentando imagens da situação precária em que vivem os de usuários de Bucareste e dados sobre HIV no país. Fora o chileno Eduardo ao meu lado, que está editando a entrevista que acabou de fazer com o professor Mejía, o restante da turma tem toda a atenção voltada para a apresentação da Gina, e seus slides mostram crianças e adolescentes usuários de drogas sendo atendidos nos serviços de sua organização local.

Está chegando a hora do almoço. Como sempre, voltaremos às duas horas, dessa vez para as considerações finais do Desmond e entrega dos certificados de conclusão do curso. Depois, iremos até o Computers Lab, onde cada um dos 32 alunos fará uma avaliação do curso, dos professores e de sua organização, incluindo o centro residencial onde ficamos hospedados. Esses dados poderão ser utilizados para corrigir deficiências e melhorar o programa do seminário, visando a sua segunda edição no ano que vem.

Bi A chinesa que tem um nome complicado e que chamamos de Bi, para facilitar, conforme sugerido por ela mesma, apresenta o Centro Internacional sobre Política de Drogas e Direitos Humanos, dirigido pelo irlandês Damon Barrett – um dos palestrantes do curso, mencionado em relato passado dessa série – e o canadense Rick Lines, atual diretor executivo da Harm Reduction Internacional, também conhecida como Associação Internacional de Redução de Danos (IHRA). Bi vai pegar um avião pra China depois do almoço e, após sua apresentação, é a primeira a receber seu certificado, sob uma salva de palmas. Que figura, um metro e meio de carisma e simpatia!, sempre impecavelmente bem vestida. Afirmo que ela é agente do serviço secreto chinês, exímia lutadora de kung fu, e não sei se ela entende que estou despretensiosamente brincando. A turma é composta por gente de todos os continentes, exceto a Antártida. Será que os habitantes do continente gelado usam drogas? Será que o proibicionismo contaminou até os habitantes daquelas longínquas paragens?

Almocei num restaurante a quilo distante três quadras da universidade com a silenciosa russa Elena, a ansiosa búlgara Iulia e a contida georgiana Nino. Não deve ter sido fácil a adolescência delas sob a opressão mão de ferro do regime comunista. Brinquei com a Elena, dizendo que os países das colegas à mesa estavam hoje livres do jugo da União Soviética, perguntando o que ela achava disso - mas não obtive resposta e decidi terminar de comer em silêncio. Um dos aspectos que achei mais interessante nessa turma foi a ampla variedade cultural, embora alguns, como Elena, visivelmente vivenciando um conflito cultural, não fossem suficientemente desprendidos de sua própria cultura para interagir livre e apropriadamente na multiculturalidade da situação.

Na volta do almoço, encontramos uma galera saindo do bandejão da universidade e fomos tomar um sorvete na praça defronte à majestosa basílica, já mencionada em relatos anteriores. Depois de uma foto conjunta com a igreja ao fundo, troquei num guichê de cambio 50 euros por pouco mais de 13.000 florins. Com parte desse dinheiro, comprei uma camiseta e um souvenir numa loja turística e voltei à sala de aula, pegando chuva. Atrasado, assisti ao final da apresentação do polonês Ian, e ouvi as considerações finais do Desmond. Recebi meu certificado sob uma salva de palmas com direito a fotos, como todos os outros. Sinceramente, fui o mais aplaudido, penso que a turma gostou de minha participação e interatividade durante essas duas semanas que passamos juntos.

No vôo da KLM, entre Budapeste e Amsterdam, 23 de julho de 2011

foto4

O jantar de ontem foi muito bom, uma confraternização final com a sensação prevalente de que tínhamos conseguido realizar juntos um evento de reforma da política de drogas de alta qualidade. O grupo estava espalhado por várias mesas que tomavam uma ala inteira do restaurante muito bem escolhido. A comida estava deliciosa, dias atrás tínhamos escolhido entre três distintos menus: frango, peixe e vegetariano, mais entrada e sobremesa. Embora eu esteja cada vez mais retornando ao vegetarianismo da fase inicial da minha vida adulta, optei pelo peixe, acompanhado de arroz, batatas cozidas e cenoura. Aliás, comi muito bem nesses quinze dias em Budapeste. Depois do jantar e da entrega do presente dos alunos ao Desmond  e à jovem húngara Marta, incansável e competente assistente de produção, e depois das palavras de despedida de ambos, aproveitei que a colombiana Catalina tinha de sair para encontrar um amigo alemão e deixei o restaurante com ela, evitando a trabalheira que seria me despedir de todo mundo. A noite estava deslumbrante, essa área central de Budapeste tem uma característica comum a Paris e Amsterdam: para onde quer que você olhe, tudo é bonito.

Estou sentado na janela das poltronas 14, e o avião lotado voa acima das nuvens. Em Amsterdam, completarei o relato sobre o que aconteceu em Budapeste, especialmente sobre as sessões do curso sobre que ainda não falei. Afinal o que me motivou a escrever esse “diário de um viajante melancólico” foi a oportunidade de transmitir e divulgar o conhecimento e materiais passados no curso, visando a fornecer idéias e subsídios para fortalecer o ativismo no movimento antiproibicionista brasileiro e eventualmente o academicismo ligado ao movimento.*2

Durante o seminário, parecia consenso entre todos participantes que a política proibicionista fracassou: uma mudança de regime se anuncia inexoravelmente no horizonte e estamos trabalhando juntos para facilitar a transição. Como acontece também no Brasil, o movimento pelo fim da guerra às drogas ganha novos adeptos a cada dia, muitos oriundos das hostes proibicionistas, outros que - como nosso presidente FHC –, ao adquirirem consciência das consequências nefastas da proibição das drogas listadas nas convenções internacionais, passaram para o nosso lado.

Não percam os próximos capítulos, diretamente da Holanda.

Fotos

Crédito das fotos

Foto 1: Os participantes do curso de verão, representando todos os continentes

Foto 2: Daniel Mejia

Foto 3: Bi

*1 -Copyleft, permitida reprodução deste que citada fonte e autor.

*2- Disse no 1o capitulo dessa série que a viagem começara cheia de imprevistos. Pois eles não param de acontecer. Já não me responsabilizo pela continuidade dessas crônicas, talvez comece uma nova série, me reservo o direito de fazer como quiser, ninguém tem nada com isso. Se continuar lendo possíveis capítulos futuros, você concorda com os termos aqui descritos.

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