Budapeste, 13 de julho de 2011
por Luiz Paulo Guanabara
Se você leu meu primeiro relato, deve ter percebido que é importante checar as datas do seu e-ticket antes de viajar, para não acontecer o que aconteceu comigo. Já me ocorreu também de chegar no check-in e descobrir que meu vôo era no dia seguinte! Foi no aeroporto de Viena, e fiquei de mala na mão! (“ficar de mala na mão” é isso - contribuição que faço agora ao nosso léxico.) Essa situação é mais fácil de resolver, se você não tem de estar impreterivelmente no destino de sua viagem no dia seguinte: você volta pra cidade e dorme lá ou, como eu fiz, inclusive porque a cidade era longe, se hospeda num hotel perto do aeroporto, relaxa, janta, fuma um (se tiver) e viaja no dia seguinte. Por acaso eu tinha, e nessas horas nada é mais medicinal para esse tipo de estresse que uma boa cannabis.
O curso começou na segunda-feira. Depois de dormir apenas três horas e passar a madrugada acordado, apesar de todo meu arsenal benzodiazepínico, desci as oito para o café da manhã – um bufê muito bom, por sinal. O mexicano Aram Barra, 25 anos, me enviara uma mensagem pelo Face para encontrá-lo no lobby e irmos juntos à universidade que fica no centro de Peste (o centro de Buda ainda não conheci). Aram é um dos muitos bons amigos que tenho no movimento antiproibicionista internacional, ativista da melhor qualidade, excelente companhia. Ainda desorientados, tomamos o ônibus que passa em frente ao centro residencial e depois o metrô até a estação Örs Vezér tér. Depois de subir pela íngreme e comprida escada rolante até a rua, que espetáculo!, aquela arquitetura européia século XVII ou XVIII, prédios de três ou quatro andares minuciosamente erguidos e trabalhados e ao fundo uma imponente e deslumbrante catedral .
Seguindo as instruções fartamente providas, atravessamos a praça, seguimos por uma rua de pedestres e chegamos ao complexo de prédios da Universidade da Europa Central, CEU na sigla em inglês. Atrasados, obviamente, a sessão inaugural estava no ponto em que os participantes vindos de todos os continentes conhecidos deste nosso planeta entregavam documentos de seguro de viagem e cartões de embarque à Marta, uma belíssima jovem estudante húngara que está trabalhando na produção do nosso curso de verão, Política de Drogas e Direitos Humanos. Em seguida seu organizador, o economista e acadêmico inglês Desmond Cohen, discursou sobre a concepção da jornada de duas semanas que faremos e falou da dificuldade de vincular esse curso experimental - que está sendo realizado pela primeira vez - a um departamento da universidade, devido à sua característica multi-inter-disciplinar. Entretanto, ele afirmou que já está previsto uma segunda edição no ano que vem, e desde já recomendo a quem porventura ficar interessado ter em mente essa possibilidade. A porta está aberta e a política de drogas latino-americana está na ordem do dia, ainda mais depois que a Bolívia denunciou a Convenção Única. A condição básica é falar e escrever inglês com fluência.
Depois de almoçar com uma colombiana, uma búlgara e uma azerbaijana (ainda não decorei o nome dos colegas), e sentir pela conversa que a demência do sistema global de controle de drogas é geral, voltei pra sala junto com elas, onde o professor polonês Wiktor Osiatynski esperava os cerca de trinta alunos para a aula inaugural sobre direitos humanos. O início foi bom, e percebi que sei muito pouco sobre o assunto, ainda mais que não tive tempo de ler os textos, postados para download na página do curso no website da universidade. (A bibliografia de todos os professores será aos poucos enviada para o site da Psicotropicus.)
O professor Osiatynski não projetava a voz e falava numa cadência monótona e entediante. As frases pareciam desaparecer em sua boca. Fiquei imaginando que isso decorria de suas aulas na Polônia no tempo da União Soviética, o medo de falar contra o regime, o pensamento subentendido nas entrelinhas, as conversas sussurradas com os colegas intelectuais sedentos por liberdade de expressão e aterrorizados pelo Gulag e a possibilidade de serem mandados pra trabalhos braçais forçados na Sibéria! Depois do almoço, de uma noite muito mal dormida e do con-fuso horário, foi grande o esforço que fiz para não dormir na cadeira. Fui ao banheiro e lavei longamente o rosto, saí para beber água e por fim saí novamente e me larguei num sofá em algum corredor do prédio, fechando os olhos por cerca de quinze minutos, antes de voltar para o derradeiro esforço de estar presente no final da aula. Sem contar o intervalo, quando todos saíram para tomar café, que não me serviu pra nada. Era nítido o cansaço da maioria e o esforço de alguns para não dormir - justo na primeira aula -, quando finalmente o discurso desapareceu de vez na garganta desse advogado constitucional e acadêmico de renome, autor de muitos livros e outras publicações, importante consultor na elaboração da atual constituição polonesa, coordenador do departamento de estudos jurídicos da CEU. Entretanto, apesar do desconforto, o que consegui captar me forneceu uma perspectiva nova sobre a questão dos direitos humanos, seus aspectos políticos e constitucionais, as liberdades individuais e a proteção contra os poderes constituídos: o meu espaço, onde posso agir, onde sou dono da minha mente. A dignidade humana e os valores, a liberdade e o bem público. Enfim, um assunto sobre que quero saber mais. Junto com a redução de danos, os direitos humanos parecem ser o caminho para a construção de uma política de drogas racional e justa que substitua a insanidade repressiva e punitiva da política vigente. Ponto para o Wiktor. O aprendizado tem segredos que a razão desconhece.
Aram e eu saímos para encontrar o Akos, e fomos até o escritório do Programa Global de Política de Drogas (GDPP), no prédio do Open Society Institute (Instituto Sociedade Aberta) - colado à universidade e conectado a ela por um corredor -, onde ele trabalha. Gosto muito do termo “sociedade aberta”, me remete à idéia de um tipo de sociedade que ainda não existe na atualidade. Seu fundador e das fundações que levam este nome é o bilionário e filantropo George Soros, húngaro de nascimento, gênio das finanças, um dos maiores financiadores do movimento pelo fim da guerra às drogas e de muitas outras causas. O GDPP tem patrocinado o trabalho de política de drogas da Psicotropicus desde 2008. De certo modo, sinto que trabalho para este cidadão que admiro.
Em seguida, um painel no auditório da universidade com seu presidente e reitor, John Shattuck, o Wiktor, o Desmond – que já mencionei acima, coordenador do curso –, o Damon Barret, do Centro Internacional de Política de Drogas e Direitos Humanos, também professor do curso, e um advogado de direitos humanos, James Goldston. Está ocorrendo paralelamente um curso sobre litígio, e seus alunos também estavam no auditório. Uma advogada brasileira está nesse curso, e fui apresentado a ela depois que a mesa terminou. Ela trabalha para uma ONG em São Paulo que defende a liberdade de expressão, conversamos brevemente, vou procurar saber mais. Por fim, um jantar de recepção. Comi um pouco e saí de fininho. Estava exausto.
Espero que estejam gostando. Gastei algumas horas escrevendo essas duas páginas. Anyway, muito em breve falarei sobre as aulas de ontem e de hoje, inteiramente voltadas para o sistema de controle de drogas das Nações Unidas. Fui!
Fotos:
1- sessão inaugural
2- visita à biblioteca da universidade
3- Aram, Tara e eu no prédio do Open Society Institute
3 comentários:
Oi LP
Obrigadão!
Vou ficar fã de seu blog... muito bom, estou 'viajando' por Budapeste, mesmo careta...rsrsrsr
bj
Está ficando cada vez mais interessante, relatarei em breve sobre as aulas dos professores Dave Bewley e Damon Barrett focadas nas Nações Unidas e seu sistema de controle de drogas, declarações, convenções, tratados e comitês. A raça humana deve ser mesmo muito perdida e irracional para precisar de tantos tratados e convençoes para regular seu comportamento e tentar melhorar seus valores!
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