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quarta-feira, 15 de junho de 2011

O problema de pressuposto das internações compulsórias: o que existe embaixo do tapete?

Por João Pedro Pádua

Umas das grandes funções, digamos, macrossociais das instituições totais (para usar o clássico conceito de E. Goffman) é tirar do meio social situações e atores com os quais a maioria da sociedade não quer ter de lidar. As prisões são um óbvio exemplo (talvez justificável, ao menos muitas das vezes). Os hospitais são outro exemplo.


Recentemente, os asilos ou “lares de idosos” se tornaram um exemplo muito importante, como o foram, no passado, as colônias de leprosos ou dos acometidos pelo conjunto de pestes que assolou a Europa na Idade Média. É claro que quando falo de “função”, não estou querendo dizer um plano maquiavélico, engendrado por algum gênio do mal – embora, a esse respeito, já que estamos falando de instituições totais, os campos de concentração para judeus da Europa nazista venham à mente. Estou falando de funções no sentido já agora clássico na sociologia contemporânea, que liga o conceito a resultados sociais gerados por certas dinâmicas sociais, resultados que podem ser queridos precipuamente por grupos sociais que desenharam a dinâmica (funções manifestas) ou efeitos colaterais destas dinâmicas, de forma mais ou menos previstas (funções latentes).

No Rio de Janeiro, após a Prefeitura anunciar, com o apoio do Ministério Público e do Judiciário, que faria remoção e internação forçada de usuários e dependentes (sim, existe essa diferença!) de crack, também chamados de “craqueiros”, ela, finalmente, levou a cabo uma ação deste tipo. Alguns carros da Prefeitura chegaram em “cracolândias” e colocaram todas as pessoas que estavam nestes locais para dentro, levando-as, posteriormente, (ao que sabemos) para hospitais públicos, onde seriam internadas. Ao serem internadas em hospitais, estas pessoas saem das interações sociais “normais”, centrais, e passam a habitar locais sociais restritos a elas e a funcionários que se ocupam delas. Como qualquer instituição total, o hospital psiquiátrico corta a ligação entre o que ocorre dentro e o que ocorre fora. Bem disse a jurista Ana Messuti (originalmente sobre os presídios), essas instituições, através do marco simbólico do muro e do portão fechado, inauguram uma nova temporalidade, que se separa da temporalidade “normal” do resto das dinâmicas sociais. Em outras palavras, nas instituições totais, os internos estão num novo enquadramento social, que os tira do resto da sociedade, mas, mais importante, tira o resto da sociedade deles.

Obviamente, a partir daqui, é fácil entrar num argumento sobre a imoralidade e desumanidade das instituições totais. Porém, como eu disse no início, nem sempre uma instituição total está completamente sem justificativa, tendo em vista tanto deveres morais, quanto normas jurídicas. Para deixar de lado o exemplo controverso da prisão, basta pensar no isolamento hospitalar de pessoas portadoras de doenças altamente contagiosas e potencialmente letais, como meningite ou tuberculose. A questão, na verdade, talvez mais do que a justificativa moral ou jurídica da internação psiquiátrica compulsória por si só (questão para a qual há já um excelente texto no site do ERA), diz respeito às justificativas locais que poderiam validar, do ponto de vista moral e/ou jurídico essa internação especificamente para os dependentes de crack. Em outras palavras, temos de investigar quais parâmetros justificariam, do ponto de vista moral e jurídico, utilizar neste caso, a internação compulsória, tendo em vista todos os pesados processos de reenquadramento e isolamento social que as instituições totais necessariamente trazem consigo.

De certa maneira, esse debate não está sendo feito. O debate que existe parece se concentrar no sopesamento moral e jurídico entre razões abstratas pelas quais o direito fundamental à liberdade e à autonomia impediriam a internação compulsória, ou, do outro lado, as razões abstratas pelas quais o direito fundamental à saúde pública (e mesmo a saúde individual das vítimas) pode ser manejado para afastar ou mitigar a liberdade individual. Ocorre que, assim posta a questão, ela é irresolvível. Parece bastante evidente que existem algumas situações nas quais o direito à liberdade impediria a internação compulsória (pense-se no caso de um paciente terminal de câncer que decide passar seus últimos momentos de vida fazendo algo que gosta, mesmo que isso lhe vá custar uma morte mais dolorosa). Do mesmo modo, também parece evidente que existem situações nas quais o direito à liberdade deve ser afastado em prol do direito à saúde de outras pessoas e da própria vítima (pense-se nos exemplos de doenças contagiosas, citados acima, ou mesmo num paciente com esquizofrenia paranoide, que tentou matar o seu filho, porque pensou que ele era um extraterrestre que queria tirar a sua vida).

A questão a enfrentar, portanto, não é sobre a correção de princípios e proposições normativas, mas antes, sobre a validade de parâmetros fáticos que são levados em conta naqueles princípios e proposições. E aqui, no caso dos dependentes de crack, parece que os parâmetros fáticos pressupostos nos discursos e nas ações dos que promovem a internação compulsória não são verdadeiros.

De modo geral, os promotores da internação assumem que: (i) ao internar, estarão gerando, ou ao menos iniciando, um processo de cura da dependência dos “craqueiros”; e (ii) ao internar, estarão impedindo que usuários de crack continuem se destruindo e destruindo as suas famílias. Infelizmente, nenhum dos dois pressupostos é inteiramente verdadeiro – e, em muitos casos, ambos são totalmente falsos. Comecemos pelo primeiro. A internação compulsória de qualquer paciente psiquiátrico é uma medida de última instância. A psiquiatria contemporânea parece ter poucas vozes dissonantes sobre isso e a razão é consequencialista: internação compulsória, como método terapêutico, simplesmente não funciona. A internação serve, apenas, como meio de impedir um perigo imediato do paciente para a sua própria segurança ou de outras pessoas. Mesmo neste caso, a internação só pode durar pouco tempo, sob pena de não só não ajudar, como piorar o tratamento do distúrbio psíquico em questão (ver, por exemplo, o Discussion Paper conjunto da OMS e do UNODC de março de 2008, com o título Principles of drug dependence treatment). Assim, na verdade, a internação compulsória, ao invés de ajudar a tratar os dependentes de crack, pode estar atrapalhando aqueles que tenham real intenção de diminuir a dependência e os danos que ela gera (seja os que pensam em iniciar tratamento, seja os que já iniciaram tratamento). Aqui, é preciso reconhecer, com pesar, que o tratamento para dependentes de alguns tipos de drogas (como álcool ou crack) tem, em geral, baixa taxa de sucesso e altas taxas de recaídas, mesmo quando feito seguindo protocolos psiquiátricos e psicológicos reconhecidos.

Resta, então, à internação compulsória, a justificativa dada pela premissa (ii), acima, que diz com a evitação de danos e tragédias maiores para o “craqueiro” e para os que lhe são próximos. Esse parâmetro é válido para muitos dos casos, mas certamente não para todos. Para começar, existem usuários de crack (normalmente os mais iniciantes) que ainda não estão dependentes. Para estes usuários, a internação compulsória é não só desnecessária, como contraproducente. Porém, mesmo para os dependentes, existem casos em que a sua situação (ainda) não é uma que coloque em risco a sua vida ou a de terceiros. Também nestes casos, a internação é desnecessária e contraproducente. No mais, mesmo que não fosse assim, a internação compulsória, como dissemos, tem de ser temporária. Sem um tratamento ambulatorial que se siga à internação, a recidiva no crack será praticamente incontornável. E aí, ficaremos num eterno interna-solta, com dispêndio de significativas somas de dinheiro público no processo.

Para notar como uma política centrada na internação compulsória é pouco justificável do ponto de vista dos resultados, basta notar que o maior problema de saúde mental do Brasil ligado às drogas – o álcool –, segundo dados do próprio Ministério da Saúde (ver a Política Nacional do Ministério da Saúde para A Atenção Integral para O Usuário de Álcool e Outras Drogas, de 2003), não só nunca foi tratado com internação compulsória de dependentes, como sequer teve essa medida proposta em qualquer momento.

Portanto, parece que a internação compulsória dos “craqueiros” serve, principalmente, aquela outra função das instituições totais, a de segregar e reenquadrar socialmente os que queremos varrer para debaixo do tapete. Mas, neste caso, a medida não é justificável, seja do ponto de vista moral, seja do ponto de vista jurídico.

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