“As drogas não são proibidas porque são perigosas. Elas são perigosas porque são proibidas.”
(Este livreto destina-se a consumidores, suas famílias e amigos. Seu propósito não é estimular o uso de substâncias psicoativas, mas fornecer informações para reduzir riscos e danos que possam estar associados a este consumo.)
A política de Guerra às Drogas imposta pelos EUA há mais de 50 anos já se provou ineficaz. A proibição não diminuiu a produção e muito menos o consumo de determinadas drogas, mas sim acarretou graves consequências à sociedade como um todo e aos usuários em particular.
À sociedade porque fomenta o tráfico ilegal das drogas ilícitas, aumentando a violência nas grandes cidades. O crime organizado se torna mais poderoso e adquire mais armamentos através do contrabando e da corrupção de policiais - e até de militares das forças armadas -, para sua defesa e proteção dos lucros. A polícia por sua vez endurece o combate, e essa política de drogas tem se provado desastrosa, como, aliás, qualquer política cujo custo-benefício seja um aumento do problema que pretende resolver. O constante aumento do consumo e da venda de drogas ilícitas, assim como o fenômeno do crack no Brasil - e o escândalo provocado -, não deixam dúvidas sobre isso.
Aos usuários porque, ao contrário das drogas lícitas, as ilícitas não vêm acompanhadas de bula com informações sobre o produto e os cuidados que se deve ter. Infelizmente a ganância leva pessoas a cometerem verdadeiros crimes contra a saúde publica. O lucro com a venda das drogas ilícitas é enorme, mas parece que nunca é o bastante, por isso, sem fiscalização, as drogas vêm sendo adulteradas sem o menor critério. Muito se fala sobre os danos causados pelo princípio ativo das drogas e a dependência que causa, mas pouco se sabe sobre as substâncias usadas para “batizá-las” nem as que são usadas durante sua fabricação.
Dois tipos de substâncias são adicionados às drogas: uma é o adulterante, que imita os efeitos da droga, e a outra é o diluente, para aumentar o volume.
Desde 2005, a fim de identificar a origem das drogas no Brasil, a Polícia Federal com o apoio do UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes) desenvolveu o Projeto Pequi (Perfil Químico), em que peritos analisam amostras de drogas apreendidas em todo o país e determinam o grau de pureza e o que se misturam a elas. Através do “DNA” das drogas, a Polícia Federal consegue estabelecer conexões entre fornecedores, traçar rotas de tráfico e identificar os produtos que devem ter prioridade de controle em cada região do país.
As principais drogas apreendidas pela Polícia e enviadas para análise são também as mais consumidas no Brasil, de acordo com a seguinte sequência:
MACONHA
A maconha fumada pela maioria da população brasileira vem do Paraguai, uma erva prensada de baixa qualidade que pode não ter nem 1% do princípio ativo THC (tetrahydrocannabinol), enquanto o padrão internacional mínimo da maconha fica entre 1% e 3%. O plantio exige certos cuidados que são negligenciados.
O THC é encontrado em maior quantidade nas plantas fêmeas, sobretudo nas partes mais altas das folhas. No intuito de aumentar o volume da produção, plantadores inescrupulosos arrancam toda a planta (muitas vezes antes do tempo) e misturam machos e fêmeas. Depois a erva é estendida sobre lonas para secar ao relento por vários dias, exposta a toda sorte de insetos. Em seguida é prensada junto com terra, raízes, galhos, folhas e até esterco, gerando um odor parecido com amônia. Frequentemente fica escondida enterrada absorvendo metais do solo, sem contar a contaminação por agrotóxicos durante o plantio.
Quando chega às favelas para a distribuição é novamente enterrada para a polícia não achar e se chover é posta para secar ao sol uma segunda vez sobre alguma laje. Considerando-se que a secagem deve ser feita na sombra, em lugar arejado, pode-se imaginar a qualidade da maconha que grande parte da população brasileira tem consumido.
O toxicologista Anthony Wong do Centro de Assistência Toxicológica (CEATOX) do Hospital das Clínicas de São Paulo encontrou crack em amostras de maconha. Entretanto, no Rio de Janeiro, essa mistura é conhecida como “craconha” e é considerada uma “nova droga” e não uma adulteração da maconha.
COCAÍNA E CRACK
A cocaína é uma das drogas mais “batizadas” no Brasil, sem contar que, como consequência da clandestinidade dos laboratórios onde é produzida e refinada, sua composição química pode variar amplamente. Desde a extração das folhas de coca (que também podem estar contaminadas com agrotóxicos), a cocaína passa por uma série de processos até chegar ao consumidor. Após a obtenção da pasta base, cada um dos eventuais intermediários envolvidos na cadeia de distribuição pode alterar a droga de duas maneiras principais, como já mencionamos acima:
1 – Modificando a forma de apresentação através de transformações químicas.
2 – Adicionando substâncias diversas (adulterantes e diluentes).
Segundo a Polícia, na cocaína vendida ao usuário no Brasil há apenas em média 25% do estimulante em suas composições e 65% no crack, possivelmente por não passar pelo processo final de adição de diluentes pelo qual passa a cocaína. Por outro lado, foi encontrado nas amostras de crack grande quantidade de resíduos das substâncias utilizadas durante todo o processo de fabricação da cocaína.
O primeiro tipo de alteração envolve a utilização de substâncias alcalinizantes e agentes oxidantes, que são eliminados em boa parte durante as diferentes etapas do processo. O segundo tipo de alteração envolve a adição de aditivos de dois tipos, adulterantes ou diluentes.
Além de solventes e diluentes, tais como sais inorgânicos (bicarbornato de sódio, cal, gesso, sal de cozinha, ácido bórico e até pó de mármore) e sais orgânicos (talco, lactose, açúcares, amido e fermento) foram encontrados os seguintes adulterantes nas amostras de cocaína e crack:
. Fenacetina (anti-térmico e analgésico de venda proibida no país)
.Paracetamol (ou acetaminofeno)
.Levamisol (vermífugo veterinário)
.Cafeína (estimulante)
.Benzocaína e lidocaína (anestésico que imita a sensação de dormência na boca causada pela cocaína pura)
De acordo com dados obtidos em amostras apreendidas pelo Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE) da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro em um estudo financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), o adulterante mais encontrado em amostras de cocaína é a cafeína, seguida da lidocaína.
Conforme figura 1. abaixo, um total de 45 amostras de cocaína apresentaram algum tipo de adulterante, com efeito anestésico, analgésico ou estimulante. Os adulterantes mais encontrados entre as amostras de cocaína adulteradas foram a cafeína (73,3%; n = 33), a lidocaína (40,0%; n = 18) e a benzocaína (35,6%; n = 16).
Figura 1.
Diversos efeitos têm sido relatados por usuários, decorrentes ao uso de cocaína associada a adulterantes. O grau com que estes adulterantes afetam um indivíduo é muito variado, como acontece no consumo de qualquer droga; o grande número de variáveis torna difícil ou impossível definir padrões de reações físicas ou de comportamento derivados do uso de drogas.
Os efeitos adversos são situações comuns experimentadas, especialmente devido à forma imprudente com que os produtos são consumidos.
Adulterantes | Efeitos que podem ser adversos |
Cafeína | Efeitos cardíacos, reações alérgicas |
Lidocaína | Náuseas, efeitos cardíacos, |
Benzocaína | Náuseas, efeitos cardíacos |
Aminopirona | Agranulocitose |
Fenacetina | Náuseas, dores de cabeça, problemas cardíacos |
ECSTASY – MDMA
MDMA (metilenodioximetanfetamina) é uma substância da família das anfetaminas e é chamada de ecstasy (ou bala) quando aparece sob a forma de pastilhas de diferentes tamanhos e cores, normalmente com um logotipo. O MDMA também pode ser vendido em pó, cristal ou cápsulas. Muito usado em festas eletrônicas (raves e casas noturnas), está frequentemente sujeito a adulterações.
Traficantes brasileiros têm feito perigosas misturas de medicamentos que às vezes tornam a droga bem mais perigosa. Há mais ou menos cinco anos eram usados basicamente cafeína e efedrina para falsificar o ecstasy. Atualmente foram encontrados, além dessas substâncias, desde remédios para emagrecer de uso controlado e até de venda proibida no Brasil* a remédios para vermes, enjôo, anti-depressivos de uso proíbido ou não, e outras anfetaminas ou metanfetaminas.
* Na legislação brasileira, segundo a Portaria 344/98 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Ministério da Saúde, substâncias que constam das Listas F1 e F2 são capazes de causar dependência física e/ou psíquica se enquadram na definição de droga da Lei 11.343 de 2006 e, portanto, são proibidas. Além disso, estas substâncias são consideradas de uso proscrito no Brasil.
Um levantamento inédito feito pela Superintendência da Polícia Técnico-Científica de São Paulo em parceria com a Fapesp revela que apenas 44,7% das pastilhas apreendidas no Estado em 2012 contêm o princípio ativo do ecstasy. O autor do estudo, o perito criminal José Luiz da Costa, do Núcleo de Exames de Entorpecentes da Polícia Científica, e presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia, diz que a composição das drogas sintéticas vendidas em São Paulo é extremamente variada, assim como o nível de concentração de substâncias.
De acordo com o psiquiatra Dartiu Xavier, do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Unifesp, alguns usuários passam muito mal ao consumirem essas pílulas. Eles e elas aparecem com quadros de hipertensão, arritmia e até infarto ou derrame, que não são característicos do ecstasy. Novamente: “As drogas não são proibidas porque são perigosas. Elas são perigosas porque são proibidas”.
Um estudo financiado pela Faperj em cooperação com o ICCE-PCERJ revelou que os comprimidos de ecstasy apreendidos no Estado do Rio de Janeiro no período de julho de 2008 a fevereiro de 2011 possuem características físicas extremamente variáveis. Comprimidos muito diferentes entre si foram obtidos nas mesmas apreensões. Grande parte dos comprimidos é obtida em pequenas quantidades, provavelmente de fornecedores variados.
Segundo o artigo “Ecstasy Consumido em São Paulo não é ecstasy” publicado na Folha em agosto de 2012, mais da metade de um grupo de amostras apreendidas em SP que foram analisadas não continham MDMA, seu princípio ativo.
Obs: Existe uma tendência na cobertura jornalística de assuntos relativos às drogas ilícitas de destacar aspectos negativos que eventualmente podem ocorrer. Entretanto, Na figura abaixo podemos notar que as sensações descritas por usuários em relação ao MDMA são positivas: empatia, humor, energia, percepção realçada.
Neste mesmo estudo ficou evidenciada a grande variação encontrada nas quantidades de MDMA por comprimido (desde 2mg até 100mg), tornando este um fator de alto risco para o usuário, uma vez que o mesmo pode ingerir até 5 comprimidos em uma mesma noite, podendo ingerir quantidades muito altas de MDMA, em função da grande variação da dosagem desta substância por comprimido.
Outra importante advertência foi feita pelo Energy Control (Projeto de Redução de Danos da ONG espanhola Associación Bienestar y Desarrollo - ABD), que detectou doses elevadíssimas de MDMA em 2012 em pastilhas analisadas na Europa (de 100 a mais de 150mg), revelando uma grande mudança em relação às pastilhas analisadas nos anos anteriores (que oscilavam de 50 a 70mg), o que pode ser um risco maior para usuários acostumados com as doses menores.
A maioria dos comprimidos apreendidos no Estado do Rio de Janeiro possui MDMA como principal substância ativa, porém poucos possuíam apenas o MDMA. O perfil mais comum de comprimidos são aqueles onde havia a presença de cafeína e lidocaína além do MDMA.
Finalmente, os açúcares predominaram como excipientes, perfil também muito comum em amostras apreendidas em países europeus. O MDMA presente nas amostras apreendidas no Estado do Rio de Janeiro possui um perfil muito semelhante aquele encontrado nas amostras de origem europeia, sendo estas provavelmente oriundas deste continente.
LSD (selos)
Existem várias formas de apresentação de LSD: líquido, cápsulas ou papel. No Brasil a mais comum é o papel. Selos ou blotters de LSD são sintetizados a partir do ácido lisérgico, fruto do “ergot” (fungo do centeio) e são psicoativos poderosos. Quando o LSD caiu na ilegalidade em 1966, despencou em qualidade, surgindo inclusive “primos” mais fracos do LSD (ALD-52, MLD-41, ISOLSD, etc.)
A maioria dos selos apreendidos no Brasil continha LSD, mas não foi determinada a quantidade. Também foi encontrada a substância 9.10 dihydrolsd em alguns selos que, apesar de os estudos indicarem atividade alucinógena, não se encontra listada na Portaria 344.95 da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, não sendo portanto proibida.
Corre o boato de que os selos, os populares doces, vendidos nas ruas, contêm anfetamina. Este mito foi desconstruído pelo simples fato de que a dose de LSD é medida em microgramas e as doses de anfetaminas são medidas em uma escala mil vezes maior, em miligramas. Não faria sentido um traficante colocar micro doses de anfetamina em seu “doce”, já que não causaria efeito algum e ainda encareceria o custo de produção.
RISCOS
É impossível identificar e explicar todos os riscos associados às diferentes combinações possíveis e que efeitos em longo prazo podem ocorrer. Uma coisa é certa: misturar substâncias é mais perigoso do que usar apenas uma. A maioria dos acidentes letais conhecidos deve-se a misturas de substâncias psicoativas, inclusive o álcool. O uso de drogas associado ao uso de bebidas alcoólicas, principalmente as destiladas (uísque ou conhaque, por exemplo) pode aumentar em muito a toxidade do produto e consequentemente aumentar os riscos e danos.
Quando uma pessoa tem uma crise ou overdose por causa do consumo de drogas ilícitas e vai parar no pronto-socorro, o médico não tem como identificar rapidamente quais as substâncias que causaram o problema. Somente uma análise de laboratório permite saber exatamente o que uma amostra contém.
A legalização de todas as drogas é uma realidade distante no mundo e principalmente no Brasil. Sendo assim a informação ainda é a melhor ferramenta para a prevenção ao uso de drogas e para a redução de danos advindos do uso de drogas ilícitas.
Ir atrás das drogas misturadas que podem causar maiores danos ao consumidor deveria ser a pauta de ação de um controle de drogas. Mas como controlar um produto de consumo que é aceito por mais de 250 milhões (segundos dados da ONU), se esse produto é proibido? Um governo que não sabe controlar as drogas consumidas por sua população não deveria ser considerado um governo incompetente?
1 - Nightlife Empowerment and Wellbeing Implementation Project (NEWIP): Field Intervention. Folheto Drogas, Festas, Prazeres e Riscos (2010). www.safernightlife.orgReferências Bibliográficas
2 - Delegado de Polícia Luis Fernando Martins Oliveira da ASDEP (Associação dos Delegados de Polícia do Rio Grande do Sul). A Cocaína e sua Adulteração (2010). Internet.
3 – Especialistas Alertam: estão adicionando crack à maconha. Gazeta do Povo, 31/08/2008.
4 – Sabino, B. D. et al (2012). Casuística de Apreensões da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ) encaminhadas para exame ao Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE-RJ) – Relação das substâncias detectadas no ICCE-RJ com as suas toxidades. Estudo enviado por e-mail para elaboração deste livreto.
5 – Sabino, B. D. (2012). Cocaína para Cartilha (Perfil Químico). Estudo enviado por e-mail para elaboração deste livreto.
6- Alves, E. A. (2012). Perfil Químico de Comprimidos de Ecstasy Apreendidos no Estado do Rio de Janeiro (IQ-UFRJ).
7- Cardoso, J. A. (2012). “Aplicação da Espectroscopia Raman Associada à Quimiometria na Análise Rápida e Não Destrutiva de Cocaína e seus Principais Aditivos em Amostras Apreendidas no Estado do Rio de Janeiro”. Dissertação de Mestrado, IQ-UFRJ.
8- United Nations Office on Drugs and Crime. UNODC e Polícia Federal ampliam parceria no combate ao crime organizado transnacional, 20/08/2009. Internet.
9- Eiras, M. M. et al, Desenvolvimento de uma nova metodologia para determinação de adulteração de maconha (2008). Segunda Semana da Pesquisa FCM UNICAMP. Internet.
10 – Atención: pastillas com alta concentración de MDMA. Energy Control (2012). Projeto de Redução de Danos da ONG espanhola Associación Bienestar y Desarrollo – ABD. www.energycontrol.org
11 – Desentorpecendo a Razão (Coletivo Antiproibicionista de São Paulo). LSD com anfetamina?, 07/04/2010. coletivodar.org
12- Cocaína vendida no Brasil é “batizada” até com vermífugo. Folha de São Paulo, 02/07/2012.
13 – Reportagem do Jornal Nacional da TV Globo em 01/2011
14 – Morris Kachani, Ecstasy Consumido em São Paulo não é ecstasy. Folha de São Paulo, 12/08/2012.
15 – Cannabis, informação para o mundo. Craconha, a marijuana adulterada..., 28/12/2010. http://cannabis-bigbuds.blogspot.com.br
16 – DanceSafe. www.dancesafe.org
17 – Erowid. www.erowid.org
16 – Checkin. http://check-in.apdes.net
OBS: Todos os textos da internet foram pesquisados em fevereiro de 2013.
Ficha Técnica
-Pesquisadores:
Denise Leão Corrêa
Bruno Duarte Sabino
Luiz Paulo Guanabara
-Edição:
Luiz Paulo Guanabara
Título: Drogas Adulteradas
ISBN 978-85-64052
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